Poucas pessoas conseguiram entender a essência da natureza humana e transformá-la em arte como Machado. Seus escritos podem ser interpretados e reinterpretados em diversos contextos, e guardarão com estes pertinência e precisão, pois em todos eles haverá um elemento em comum: pessoas.
E é nessa senda que trataremos da novidade da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA), mais especificamente em relação à chamada “extinção sem ônus” do contrato. Contudo, antes de adentrarmos no cerne da questão, peço ao nobre leitor que se deleite com breve resumo do conto “A igreja do diabo”[1], de Machado de Assis. Aos religiosos ou ateus, tranquilizo-os antecipando que o conto não trata do tema “religião”, esse é apenas o pano de fundo. Vejamos:
O diabo tem audaciosa iniciativa: criar sua própria igreja na Terra! Seu objetivo era simples: estabelecer um lugar onde todos os pecados, ao contrário das igrejas convencionais, fossem não apenas aceitos, mas também celebrados. Antes de iniciar sua missão, o coisa ruim sobe ao Céu para comunicar seus planos a Deus. Esperava-se confronto ou repreensão, mas, em vez disso, Deus permite que ele siga em frente.
Com sua igreja prontamente estabelecida, o chifrudo vê um rápido crescimento em sua congregação. Pessoas de todos os tipos se juntam, ansiosas para celebrar seus vícios sem julgamentos ou culpas. Contudo, não demora muito para que as coisas comecem a tomar um rumo inesperado:
“[…] notou o diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias…”
Essa confusão frustra profundamente o tinhoso, que decide encerrar sua igreja. Retornando ao Céu para relatar seu insucesso a Deus, o encardido se depara com a serenidade e o sorriso divino, que apenas lhe diz: “- Que queres tu, meu pobre diabo? […] É a eterna contradição humana.”
É fato que a NLLCA inovou ao prever a possibilidade de extinção do contrato administrativo de trato contínuo antes do prazo e sem haver ônus para a Administração, mesmo nos casos em que não há culpa do contratado. É a previsão do art. 106, inciso III. Vamos ao texto:
Art. 106. A Administração poderá celebrar contratos com prazo de até 5 (cinco) anos nas hipóteses de serviços e fornecimentos contínuos, observadas as seguintes diretrizes:
[1] ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.
I – a autoridade competente do órgão ou entidade contratante deverá atestar a maior vantagem econômica vislumbrada em razão da contratação plurianual;
II – a Administração deverá atestar, no início da contratação e de cada exercício, a existência de créditos orçamentários vinculados à contratação e a vantagem em sua manutenção;
III – a Administração terá a opção de extinguir o contrato, sem ônus, quando não dispuser de créditos orçamentários para sua continuidade ou quando entender que o contrato não mais lhe oferece vantagem.
- 1º A extinção mencionada no inciso III do caputdeste artigo ocorrerá apenas na próxima data de aniversário do contrato e não poderá ocorrer em prazo inferior a 2 (dois) meses, contado da referida data.
- 2º Aplica-se o disposto neste artigo ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática. [grifo nosso]
Trocando em miúdos, o que o legislador previu foi o seguinte: a Administração pode celebrar contratos de até 5 anos de duração já de início, sem se preocupar caso necessite extingui-lo[3] antes do seu término, pois, conforme o dispositivo legal, poderá fazê-lo sem ônus a cada aniversário do contrato.
Para entendermos melhor essa previsão, é necessário compreender o seu porquê. Muitos gestores temiam celebrar contrato de mais de 12 meses de duração já de início, ou mesmo de 5 anos, pela Lei 8.666/1993, pois tinham receio de necessitar eventualmente resolvê-lo antes do prazo, seja porque o seu objeto não era mais necessário e adequado, por deixar de ser econômica ou tecnicamente vantajoso, seja porque precisaria fazer rearranjos orçamentários que comprometeriam a sua execução futura.
E aqui abro um “parágrafo parênteses”: sim, a Lei 8666/1993 admitia que fosse celebrado contrato contínuo de mais de 12 meses. Poderia ser celebrado até mesmo com duração de 5 anos, e nesse caso, claro, não seria possível prorrogação. Isso é tema pacificado.
Algum leitor poderá bradar: “ah, mas eu aprendi que estava escrito na Lei que a vigência deveria ser restrita aos créditos orçamentários, e por isso só seria possível celebrar o contrato por até 12 meses”. Essa era uma interpretação equivocada, que de tão repetida acabou se tornando uma espécie de “lenda urbana licitatória”. De fato, existe essa previsão quanto aos créditos orçamentários, mas ela não importa em proibição de contratos acima de 12 meses. Até porque, em contratos com duração de 12 meses, a parte da execução que se dava no exercício seguinte ficava sem previsão orçamentária até que o Orçamento do próximo ano fosse aprovado.
Fechando os “parênteses”, com a previsão do art. 106, inciso III, da NLLCA resolveu-se o problema narrado: a Administração pode contratar por período maiores e, caso seja necessário, terá a possibilidade de resolver o contrato a cada aniversário sem arcar com perdas e danos. Assim, a cada aniversário do contrato (1 ano, 2 anos, 3 anos, 4 anos), a Administração, diante das hipóteses de falta de vantajosidade ou de créditos orçamentários, poderá “avisar” ao contratado de que o contrato será
Essa extinção do contrato pode ser tecnicamente chamada de “resilição unilateral”, que é a possibilidade de extinguir o contrato por iniciativa de uma das partes sem que tenha havido inadimplemento contratual (arts. 472 e 473 do Código Civil).
resolvido em data próxima, desde que distante ao menos dois meses da data do aniversário.
Aqui cabe esclarecer que a data do aniversário é a do início da execução contratual, e não a da assinatura. Portanto, imagine que o contrato teve execução iniciada em 10 de maio de 2024. Até o dia 10 de maio de 2025[4] a Administração pode notificar o contratado de que o contrato será resolvido em data específica, sendo que esta data tem de ser, no mínimo, 2 meses após o aniversário, ou seja, a partir de 10 de julho de 2025.
Desse modo, a cada aniversário – termo curiosamente utilizado pelo Legislador –, poderá haver dois presentes: um para a Administração, que não terá ônus na resolução; e outro presente (de grego) para o contratado, que receberá um “foi bom enquanto durou” em relação àquele contrato.
Bom, já tratamos da NLLCA, da extinção contratual e do presente de aniversário, falta falar de… Machado de Assis! Voltemos ao conto. Machado retrata o eterno inconformismo e insubmissão humanos, segundo os quais nunca queremos cumprir “100%” daquilo que nos é imposto.
Assim, durante a vigência da Lei 8.666/1993, não era raro perceber certo desespero de gestores públicos ao tentarem resolver contratos longos antes da data de término sem gerar nenhum tipo de ônus para a Administração. Mas, agora que deixou de existir o principal problema dos contratos contínuos acima de 12 meses, vê-se gestores celebrando esses mesmos contratos contínuos com… 12 meses de duração.
Em não havendo no horizonte previsão da desnecessidade do objeto do contrato nem falta de previsão orçamentária, uma pergunta pertinente seria: nesses casos, o gestor pode celebrar o contrato contínuo com previsão inicial de apenas 12 meses? A resposta é: sim. O espírito da NLLCA é o de dotar o administrador público de maior autonomia. Essa é, na nossa visão, a correta interpretação sistemática da norma. Contudo, em casos como o retratado, será do gestor o ônus argumentativo de demonstrar a vantagem em a Administração deixar de celebrar o contrato com prazo maior, valendo-se da previsão do art. 106, inciso III, da NLLCA.
Esse ônus argumentativo advém da necessidade de, nas condições acima explicitadas, demonstrar-se o porquê de a Administração deixar de adotar solução mais econômica e eficiente, por conta da desnecessidade de celebração de sucessivas prorrogações anuais do contrato. E aqui não custa lembrar que o gestor público é administrador de coisa alheia, da res publica, e, na condição de “mandatário”[5], deve explicar suas decisões.
Também não se está defendendo que o gestor público necessite escrever uma “tese” para justificar o contrato de 12 meses, isso em deferência aos princípios da motivação e do formalismo moderado, bem como repelindo o chamado “apagão das
[4] “Ah, mas a data correta não seria 9 de maio?”: ouvi dizer que celebrar aniversário antes do dia dá azar! Em bom português: aniversário é aniversário!
[5] Aqui se adota o termo “mandatário” no sentido comum, de quem recebe atribuição para negociar coisa de outrem, não se está a referir à “teoria do mandato” do direito administrativo.
canetas”. Basta, nesses casos, que seja declinado o motivo objetivo segundo o qual é mais vantajoso à Administração o contrato nessa formatação. Mas o gestor deverá fazê-lo, consistindo a ausência da expressa previsão desse motivo – a nosso sentir – falha formal da instrução do processo de licitação, a ser apontada pelo órgão de assessoramento jurídico.
Uma outra frente em relação a essa extinção sem ônus é a alegação de sua inconstitucionalidade. Nomes como Marçal Justen Filho defendem a utilização da técnica de interpretação conforme a Constituição com o intuito de interpretar o dispositivo no sentido de que caberá sim à Administração cobrir eventuais perdas e danos nos casos da “extinção de aniversário”. Vejamos:
“Portanto, a previsão legal de que a extinção do contrato far-se-á ‘sem ônus’ para a Administração exige interpretação conforme. A resolução contratual ocorrerá sem ônus para a Administração na medida em que o particular não sofra prejuízo. Não é cabível admitir, em face da Constituição, que a Administração se aproprie de vantagens às custas do particular, enriquecendo-se indevidamente”.[6]
Este autor, com máxima vênia e deferência, entende de maneira distinta. A técnica da interpretação conforme a Constituição[7] é medida drástica, que somente deve ser utilizada em dispositivos legais com tamanho problema de incompatibilidade constitucional que, nesses casos, uma e apenas uma interpretação fará com que a previsão legal esteja em consonância com a Carta Maior. Concordamos com o ilustre autor acerca da causa e do fundamento da alegação, mas pensamos que, nesse caso, há outras interpretações possíveis e que não representarão afronta ao texto constitucional.
Primeiro, vamos ao contexto fático: não é crível que, ante a redação do art. 106, o mercado irá precificar o contrato, em casos como esses, levando em consideração o seu prazo de vigência nominal. Conhecedor como nenhum outro player acerca de custos e riscos, o mercado certamente irá precificar esses contratos em 14 meses (12 meses do aniversário somados aos dois meses mínimos para notificação).
O que se pode arguir é que, com tal previsão, a Administração Pública deixará de auferir a economia de escala e de pulverização de custos de um contrato de 5 anos. O questionamento, portanto, é se o legislador poderia impor à Administração condição, ao mesmo tempo em que a “presenteia” com a possibilidade de resolução antes do término. Parece-nos que, ante a ampla discricionariedade que o legislador nacional tem, tal escolha é perfeitamente possível e constitucional. Não nos parece que foi ultrapassado o limite após o qual o Judiciário estaria autorizado a aplicar a técnica da interpretação conforme.
Igualmente, existem várias outras interpretações que, ao nosso ver, são aderentes à mens legis e conformes com a Carta Maior. Citamos algumas. O administrador público pode, diante de expressa renúncia à possibilidade de extinção sem ônus, obrigar a Administração a arcar com perdas em danos nessas situações, a fim de aferir o ganho
[6] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 1340.
de escala e demais vantagens. Tudo contando no instrumento convocatório e no contrato administrativo.
Outra interpretação possível – apesar de preferirmos a anterior – é a de que a regra do art. 106, inciso III, da NLLCA será aplicada apenas quando constar expressamente no instrumento convocatório e/ou no contrato administrativo. Essas e outras sendas interpretativas são, a nosso ver, juridicamente possíveis e constitucionalmente adequadas, razão pela qual não é possível, nesse caso, a utilização da técnica da interpretação conforme a Constituição.
Entendemos que o dispositivo em análise comporta uma outra técnica de controle de constitucionalidade: a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto[8], medida menos drástica e que respeita o espaço de discricionariedade legislativa. A diferença entre essa técnica e a interpretação conforme é que, na primeira, afasta-se apenas uma ou algumas das possíveis interpretações, enquanto na interpretação conforme se obriga à observância de apenas uma em detrimento de todas as outras.
Também pensamos ser incompatível a “extinção de aniversário” sem ônus nos casos de contratação integrada e semi-integrada, sobretudo se houver despesa de investimentos que reverterá à Administração ao final do contrato. A natureza dessas contratações é eminentemente de pulverização de custos, e, portanto, deve ser também declarada inconstitucional a interpretação de aplicação do dispositivo em contratação integrada ou semi-integrada.
Desse modo, defendemos que o art. 106, inciso III, da NLLCA deve ter declarada a sua inconstitucionalidade sem redução de texto, a fim de afastar a interpretação segundo a qual a Administração não deve arcar com o ônus da extinção precoce do contrato sem culpa do contratado se o instrumento convocatório e o contrato administrativo contiverem previsão expressa renunciando a essa possibilidade, ou nos casos de contratação integrada e semi-integrada.
Ao gestor e servidores públicos, por ora, a sugestão é: coloquem expressamente na minuta do contrato anexa ao edital a previsão da “extinção de aniversário” do art. 106, inciso III, da NLLCA, quando dela quiserem lançar mão. Em contratação integrada ou semi-integrada, bem como nos casos concretos em que a previsão da “extinção de aniversário” traga notório prejuízo à Administração: prevejam expressamente na minuta do contrato que àquele ajuste não se aplica a extinção precoce sem ônus. Em todos os casos, o Estudo Técnico Preliminar deverá trazer as devidas justificativas.
A discussão sobre o tema está apenas no começo, mas uma coisa já é possível afirmar com convicção: Machado tinha razão. Seja em uma escolha hermenêutica ou de gestão, o ser humano sempre lamentar pela opção a priori indisponível: “É a eterna contradição humana”[8].
[9] ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.