Marcus Alcântara[1]
Ronny Charles L. de Torres[2]
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei no 14.133/2021) trouxe diversas mudanças com o objetivo de modernizar e tornar mais eficiente o processo licitatório no Brasil.
Em relação às exigências habilitatórias, contudo, não houve mudança significativa em relação à legislação antiga, além de alguns detalhes que provocam dúvidas ou interessantes debates entre aqueles que atuam com contratações públicas.
Uma das mudanças que tem chamado especial atenção é, no âmbito da habilitação econômico-financeira, a exigência da apresentação do balanço patrimonial, com demonstração de resultado de exercício (DRE) e demais demonstrações contábeis dos dois últimos exercícios sociais.
Embora a intenção seja possibilitar uma análise mais ampla sobre a capacidade financeira e a estabilidade das empresas participantes, essa exigência pode, a depender de como seja tratada nos editais, paradoxalmente, afastar empresas em crescimento que apresentam bons resultados no último exercício social avaliado.
Este sucinto artigo, portanto, pretende analisar criticamente essa exigência e propor uma reflexão sobre sua eficiência e impacto no ambiente de negócios.
Pois bem, para a habilitação, exige-se dos licitantes, entre outras, a qualificação econômico-financeira, que será composta por um conjunto de dados e informações compatíveis com a natureza e as características/especificidades do objeto, capazes de aferir a capacidade financeira do licitante, em relação aos compromissos que terá de assumir, caso lhe seja adjudicado o contrato.
Portanto, a habilitação econômico-financeira objetiva a verificação da aptidão econômica do particular, de forma que fique resguardada a existência de condições suficientes e compatíveis com a posterior execução contratual.
Nos termos da Lei nº 14.133/2021, a habilitação econômico-financeira deve ser comprovada de forma objetiva, por coeficientes e índices econômicos previstos no edital.
Nesse objetivo, ela estipula que, para participar de licitações, os licitantes devem apresentar balanço patrimonial, demonstração de resultado de exercício e demais demonstrações contábeis dos dois últimos exercícios sociais.
Embora a intenção da lei seja válida, a exigência de demonstrações contábeis dos dois últimos exercícios sociais pode se revelar ineficiente e até prejudicial em certos casos. Empresas em fase de crescimento, que apresentam bons resultados no último exercício social analisado, podem ser excluídas do processo licitatório se tiverem enfrentado dificuldades financeiras no exercício anterior. Essa situação pode ocorrer por diversos motivos, incluindo crises econômicas, investimentos significativos em expansão ou reestruturações internas.
Imagine uma startup que, após um período de investimento e desenvolvimento de produtos, começa a gerar lucros significativos. Apesar do potencial de inovação e eficiência que essa empresa poderia trazer para os contratos públicos, a exigência de demonstrações contábeis dos dois últimos exercícios poderia desqualificá-la automaticamente devido a resultados negativos no período de incubação.
Outrossim, diante dos recentes impactos econômicos decorrentes da pandemia Covid-19, muitas empresas passaram por dificuldades financeiras e, com muito esforço, estão agora apresentando resultados econômicos positivos. A exigência de determinados índices pelo prazo de dois anos pode prejudicar a participação dessas empresas em licitações, mesmo já recuperadas financeiramente, nas situações em que sua performance econômica no ano anterior não atenda aos índices estabelecidos.
Necessário lembrar que a Constituição Federal, em seu artigo 37, inciso XXI, ao tratar sobre o tema habilitação, fixou que seus requisitos deveriam ser apenas os necessários à garantia do cumprimento das obrigações contratuais, o que justifica, no caso concreto, o necessário uso da proporcionalidade. Este relevante comando constitucional é muitas vezes ignorado pelos autores dos editais de licitação, que repetem regras habilitatórias sem o cuidado de fazer a devida compatibilização com a efetiva pertinência de tais requisitos para a demonstração das condições para cumprimento das obrigações contratuais.
A Lei nº 14.133/2021 estabeleceu no seu artigo 69 os limites para exigência de habilitação econômico-financeira. Seu texto não induz que todos os documentos devam ser exigidos. O caput do referido artigo reforça esta ideia, ao exigir justificativa no processo licitatório.
Desse modo, o responsável pela confecção do edital tem o dever de examinar o caso concreto e definir o que será necessário para aferir a capacidade econômico-financeira dos licitantes, estipulando quais os documentos a exigir, respeitados os limites máximos admitidos pela Lei.
Diante dessa correta compreensão, a exigência de demonstrativos contábeis dos dois últimos exercícios sociais, com a obrigatoriedade de cumprimento de índices mínimos em ambos, mostra-se desarrazoada. Para fins de aferição da capacidade econômica do licitante é bastante aferir os índices nos demonstrativos do último exercício social, posto que são os mais atualizados e se sobrepõem àqueles apurados no exercício pretérito.
É fundamental compreender que a aplicação rígida e irrefletida dessa exigência em relação a os dois últimos exercício sociais pode contrariar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, fundamentais para as exigências habilitatórias, por expresso mandamento constitucional.
Mas, então, qual a serventia do dispositivo legal? Esta é uma pergunta que vem se repetindo em inúmeros debates entre especialistas e aplicadores da Lei, passando por consultas a profissionais da Contabilidade.
Analisando as possibilidades, tem-se que as normas que tratam da elaboração de demonstrativos contábeis são bastante variadas, a depender do porte da sociedade. Assim, temos a NBC TG 26, a NBC TG 1000, NBC TG 1001, NBC TG 1002, a NBC ITG 1000, entre outras, que dispõem sobre a contabilidade para pequenas, médias empresas, microentidades, além das normas completas e específicas de contabilidade e da Lei nº 6.404/1976, que dispõe sobre as sociedades por ações.
Diante disso, tem-se um verdadeiro emaranhado de normas contábeis dispondo, entre outros pontos, sobre a apresentação e organização das demonstrações contábeis. Há casos, inclusive, nos quais a sociedade pode utilizar mais de uma norma. A escolha, por vezes, passa pela receita bruta auferida em dois exercícios financeiros; em outras situações, a empresa é obrigada a permanecer na norma escolhida por dois exercícios financeiros consecutivos.
Para fins de habilitação em licitação, é importante saber qual norma deve ser seguida pela empresa. Demonstrativos contábeis incompletos, ou elaborados à margem da norma aplicável, devem ser rejeitados, sujeitando a empresa à inabilitação. Cada norma aponta um rol de demonstrativos, bem como uma estrutura a ser seguida.
A norma ITG 1000 traz os modelos para apresentação dos demonstrativos contábeis. Para o Balanço Patrimonial (BP) e o Demonstrativo de Resultado de Exercício (DRE), por exemplo, a norma aponta para demonstrativos com 2 colunas, que trazem os números da empresa em dois exercícios financeiros.
A comparabilidade entre exercícios também está presente nas normas TG 1000, TG 1001 e TG 1002. Assim, a exigência do BP e do DRE de dois exercícios financeiros, constante na Lei 14.133/2021 também encontra amparo em norma contábeis. A grande questão é definir o que fazer com tal análise.
A comparabilidade é uma característica qualitativa que aumenta a utilidade da informação contábil. Tarca[3] argumenta que as informações de uma empresa serão mais úteis se puderem ser comparadas com as informações de outra empresa ou com informações da mesma empresa em outro período.
Faz todo sentido exigir demonstrativos contábeis que possibilitem comparar os números da empresa em 2 exercícios. Desse modo, pode-se analisar tendências, detectar indícios de fraude, pela discrepância entre valores, e outras serventias a serem indicadas pela Administração no planejamento da contratação. Contudo, equivocadamente, alguns editais estão utilizando dos demonstrativos de 2 exercícios sociais para aferir os índices contábeis nos dois exercícios e somente habilitar as empresas que atinjam o mínimo necessário em ambos.
Esta exigência afronta a Constituição Federal, que apenas admite a exigência daquilo necessário à garantia do cumprimento das obrigações. As exigências devem ser proporcionais aos riscos a serem assumidos com a contratação sob pena de disfuncionalmente afastarem licitantes aptos ao fornecimento pretendido, prejudicando a competitividade.
No contexto das licitações, a exigência de índices contábeis de dois anos de demonstrações contábeis, com utilização de ambos para fins de inabilitação, não é a medida mais adequada para avaliar a capacidade financeira atual de uma empresa, especialmente aquelas que estão em rápida expansão, pois bastaria à empresa atender aos índices no último exercício social.
As informações constantes nos demonstrativos contábeis dos 2 últimos exercícios sociais podem, e devem, ser analisadas qualitativamente, considerando o contexto específico do mercado onde se insere a empresa, seus planos de crescimento e investimentos recentes. É para isso que as normas que orientam a elaboração dos demonstrativos contábeis foram criadas, e não para extrair recortes de situação pretérita (ultrapassada), prejudicando a escolha daquele que possibilitará o melhor resultado para a Administração, a um menor custo.
Em suma, a exigência de demonstrações contábeis dos dois últimos exercícios sociais, conforme estipulado pela Lei 14.133/2021, visa garantir a escorreita análise sobre a solidez financeira das empresas que participam de licitações públicas e não deve ser utilizada de maneira disfuncional.
A aferição isolada de índices contábeis extraídos dos 2 exercícios sociais, para fins de inabilitação, pode ser ineficiente ao afastar empresas em crescimento que apresentam bons resultados no último exercício. Uma abordagem mais flexível e contextualizada pode promover um ambiente de negócios mais inclusivo e dinâmico, beneficiando tanto a administração pública quanto as empresas inovadoras e em expansão.
Adotar medidas que equilibrem a necessidade de segurança financeira com a realidade dinâmica do mercado é essencial para que a administração pública possa contar com os melhores fornecedores, promovendo a eficiência e a inovação nos serviços prestados à sociedade.
[1] Contador. Servidor Público Federal. Secretário de Auditoria do TRT20. Pós-graduado em Licitações e Contratos. Pós-graduado em Perícia Contábil. Pós-graduado em Gestão Estratégica de Pessoas. Foi VicePresidente do Conselho Regional de Contabilidade de Sergipe. Membro fundador do Instituto Nacional da Contratação Pública – INCP. Professor, Palestrante e Consultor. Autor de artigos especializados em licitações e contratos. Co-autor de livros jurídicos, entre eles: Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Editora Quartier Latin; Licitações Públicas: Homenagem ao jurista Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, Editora Negócios Públicos.
[2] Advogado. Consultor Jurídico. Parecerista. Palestrante. Doutorando em Direito do Estado. Mestre em Direito Econômico. Pós-graduado em Direito tributário. Pós-graduado em Ciências Jurídicas. Advogado da União licenciado. Foi Membro Fundador da Câmara Nacional de Licitações e Contratos Uniformização da Advocacia Geral da União. Atuou como Consultor Jurídico Adjunto da Consultoria Jurídica da União perante o Ministério do Trabalho e Emprego. Atuou, ainda, na Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência Social, na Consultoria Jurídica do Ministério dos Transportes e na Consultoria Jurídica da União, em Pernambuco. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (15ª Edição. Ed. JusPodivm); Direito Administrativo (Coautor. 14ª Edição. Ed. Jus Podivm); Terceiro Setor: entre a liberdade e o controle (Ed. Jus Podivm) e Comentários à Lei de Improbidade administrativa (Coautor. 2ª edição. Ed. Jus Podivm).
[3] Tarca, A. (2020). The IASB and comparability of international financial reporting: Research evidence and implications. Australian Accounting Review, 30(4), 231-242.